7 de Janeiro de 2025

Entrevista a Marta Nunes: “Portugal tem imenso potencial em áreas como a biotecnologia”

Portugueses que se destacam lá fora ajudam a descobrir onde estão oportunidades de negócios e que tipo de empresas e atividades o país pode atrair. Uma iniciativa que junta o Negócios e o Conselho da Diáspora Portuguesa.

1- O que o levou a sair de Portugal?

Saí de Portugal pela primeira vez ainda durante a faculdade para realizar um estágio Erasmus na Noruega, durante o meu último ano da licenciatura em Bioquímica. Essa experiência foi transformadora e despertou em mim o desejo de viver e trabalhar em diferentes culturas e sistemas académicos. Depois, realizei o meu doutoramento em Ciências Biomédicas (Neurociências) na Cornell Medical School, em Nova Iorque. A experiência de viver em Manhattan nos meus 20 e poucos anos foi única, não só pela intensidade cultural da cidade, mas também pelo contato com uma mentalidade mais aberta e flexível, onde o background académico não limita as oportunidades profissionais.

Desde então, vivi em vários lugares, como Paris, onde fiz o pós-doutoramento no Institut Pasteur, África do Sul e, mais recentemente, Lyon, França. Na África do Sul, trabalhei mais de 13 anos numa unidade de investigação localizada no hospital Chris Hani Baragwanath, no Soweto, nos arredores de Joanesburgo. Este hospital é considerado o terceiro maior do mundo e um local fascinante, com muitas possibilidades para realizar investigação biomédica. Foi uma experiência enriquecedora tanto a nível profissional quanto pessoal, permitindo-me liderar projetos de grande impacto na saúde pública.

2- Que vantagens ou desvantagens lhe trouxe o facto de ser português?

Não tenho a certeza se vem só da nossa natureza portuguesa, mas tenho uma grande capacidade de adaptação e facilidade em estabelecer conexões culturais e interpessoais. Portugal tem uma forte tradição de diálogo intercultural, algo que me ajudou a navegar por contextos muito diferentes. Por outro lado, ao entrar em sistemas muito estruturados, como o francês, percebi que a minha formação internacional nem sempre é imediatamente reconhecida, o que traz desafios adicionais em posições de liderança. Apesar disso, continuo a valorizar o fato de que a nossa cultura nos ensina a sermos resilientes e a encontrar soluções mesmo em cenários adversos.

3- Que obstáculos teve de superar e como o fez?

Viver e trabalhar em diferentes países trouxe desafios específicos a cada contexto. Nos Estados Unidos, a maior dificuldade foi ajustar-me ao ritmo intenso e à competitividade, mas encontrei inspiração na meritocracia e no foco em resultados. Em França, o sistema altamente burocrático e a falta de adaptação para profissionais estrangeiros em posições seniores têm sido obstáculos relevantes. Apesar disso, além de tentar fazer as coisas da forma tradicionalmente francesa, esforço-me para trazer ideias novas e inovar dentro deste sistema, que é, muitas vezes, bastante rígido. Essa abordagem permite-me adaptar-me às regras locais, mas também introduzir melhorias e perspetivas diferentes.

Na África do Sul, os desafios incluíram adaptar-me ao ritmo de vida em Joanesburgo, uma cidade vibrante, mas com especificidades que exigem flexibilidade, e atrair pessoas altamente qualificadas para trabalharem em ciência, num contexto muitas vezes marcado por recursos limitados. Para superar as dificuldades de financiamento, foquei-me em atrair recursos internacionais e em estabelecer colaborações com investigadores de outros países.

Além disso, participo e apresento o meu trabalho em muitas conferências internacionais, o que me dá uma visão global e acesso às inovações mais recentes. A minha participação em advisory boards internacionais também tem sido fundamental, não só para expressar a minha opinião em questões importantes, mas também porque me permite estar constantemente atualizada e construir uma rede de contatos que enriquece tanto o meu trabalho quanto o impacto da minha investigação.

4- O que mais admira no país onde está?

Admiro o forte compromisso da França com a pesquisa e o desenvolvimento. Além disso, os franceses têm uma excelente abordagem ao equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Apesar de levarem o trabalho muito a sério, também valorizam profundamente o tempo livre, o que cria um ambiente mais saudável. A qualidade de vida e a riqueza cultural de Lyon são também fontes de inspiração.

5- O que mais admira na empresa ou organização onde está?

Trabalho para os Hospices Civils de Lyon e a Université Claude Bernard Lyon 1, instituições que são referências em investigação médica e fundamental. Admiro, além do compromisso com a excelência científica e o impacto na saúde pública, a forma como estas organizações estabelecem parcerias com o setor privado. Lyon beneficia de um grande ecossistema de indústrias farmacêuticas e de biotecnologia, e o sistema francês é particularmente aberto a este tipo de colaboração entre o setor público e privado, o que acelera a inovação. Outro ponto que destaco é o ambiente de integração entre hospitais e universidades em França. Muitos médicos, além das suas funções clínicas, acumulam posições como investigadores, o que facilita a realização de estudos clínicos. Além disso, a formação em medicina em França inclui investigação, incentivando os futuros médicos a desenvolverem uma perspetiva científica desde o início. Esta ligação direta entre hospitais e universidades cria um ecossistema rico e dinâmico para a investigação biomédica. No entanto, o que mais me motiva é dirigir o Center of Excellence in Respiratory Pathogens, onde lidero uma equipa focada em doenças infecciosas e vacinas.

6- Que recomendações daria a Portugal e aos seus empresários e gestores?

Portugal tem imenso potencial para se destacar em áreas de alta especialização, como biotecnologia e saúde pública. Para isso, é essencial investir mais na internacionalização da ciência e na colaboração entre o setor público e privado. Essa colaboração é especialmente importante num mundo globalizado, onde a inovação frequentemente surge da convergência entre diferentes setores.

Num momento em que a informação é chave, seria estratégico que Portugal apostasse no uso de real-world data para realizar estudos epidemiológicos. Dados coletados de forma sistemática em hospitais podem ser ferramentas valiosas para abordar questões científicas relevantes e apoiar políticas de saúde baseadas em evidências.

Portugal deve também explorar a sua ligação histórica e cultural com países africanos, promovendo cooperações no campo da ciência e, em particular, na saúde pública. Estabelecer redes de colaboração científica com esses países pode trazer benefícios mútuos e posicionar Portugal como um parceiro estratégico em iniciativas globais.

Além disso, criar estruturas que facilitem o regresso de profissionais altamente qualificados ao país seria um passo estratégico para maximizar o talento da diáspora, enquanto fortalecem áreas críticas como educação e ciência.

7- Em que setores do país onde vive poderiam as empresas portuguesas encontrar clientes?

Na França, vejo grande potencial para empresas portuguesas nos setores de biotecnologia, saúde, e até mesmo na indústria alimentar, onde a qualidade portuguesa é reconhecida. A reputação de Portugal pela qualidade e inovação pode ser uma vantagem em parcerias científicas e comerciais. Além disso, o mercado francês valoriza autenticidade e excelência, características que Portugal oferece.

8- Em que setores de Portugal poderiam as empresas do país onde vive querer investir?

Com a crescente digitalização e a qualidade das universidades portuguesas, há oportunidades para empresas francesas investirem em centros de investigação, inovação tecnológica e iniciativas relacionadas com a sustentabilidade. Além disso, Portugal poderia aumentar a sua participação em ensaios clínicos de empresas internacionais, aproveitando a infraestrutura hospitalar e os profissionais altamente capacitados. Isso fortaleceria a posição do país como um hub científico na Europa e atrairia investimentos significativos para o setor da saúde.

Embora a pergunta não se foque neste aspeto, é importante destacar que Portugal é um caso de sucesso em vacinação, alcançando coberturas vacinais muito elevadas. Este é um exemplo que outros países poderiam seguir, aprendendo com as estratégias portuguesas de vacinação.

9- Qual a vantagem competitiva do país em que vive que poderia ser replicada em Portugal?

Um grande fator competitivo em França é a existência de uma carreira estruturada de investigador. Desde cedo na carreira, é possível obter uma posição permanente no sistema, o que proporciona grande estabilidade e permite focar na investigação de longo prazo. Replicar este modelo em Portugal ajudaria a atrair e reter talentos, criando um ambiente mais favorável para a inovação e o desenvolvimento científico.

10- Pensa voltar a Portugal? Porquê?

Portugal é e sempre será o meu lar, e penso frequentemente em regressar, especialmente pela ligação emocional ao país. No entanto, o meu trabalho atual permite-me contribuir para o país de forma significativa, mesmo à distância. A decisão de voltar estará sempre ligada à oportunidade de continuar a fazer a diferença, seja em Portugal ou no contexto internacional.