15 de Outubro de 2024

Entrevista a Armando Leite Mendes de Abreu: “Com o Brasil não funciona fazer negócios à distância”

Portugueses que se destacam lá fora ajudam a descobrir onde estão oportunidades de negócios e que tipo de empresas e atividades o país pode atrair. Uma iniciativa que junta o Negócios e o Conselho da Diáspora Portuguesa.

1- O que o levou a sair de Portugal?

A vontade de empreender noutro país. Sabíamos que o potencial energético eólico e solar do Nordeste do Brasil era imenso, e que este setor estava completamente virgem no Brasil. O espírito empreendedor, e a possibilidade de iniciar uma atividade nova e ser pioneiro num setor extremamente promissor, levou-me a tomar a decisão de vir para Fortaleza, Ceará, no Brasil.

2- Que vantagens ou desvantagens lhe trouxe o facto de ser português?

A principal vantagem foi, como é óbvio, a mesma língua. No entanto, tenho de admitir alguma dificuldade inicial em relação à cultura gramatical do português falado no Brasil. A minha primeira reação aos textos escritos pelas pessoas aqui no Brasil era, “Isto está tudo errado”. Com o tempo, fui-me habituando à maneira de escrever a língua portuguesa pelos brasileiros. No final, não está certo nem errado, é diferente.

Como principal desvantagem, indico uma diferença cultural muito grande e o facto de, depois de 28 anos, continuar a ser considerado estrangeiro. Mesmo estando muito bem integrado na sociedade cearense, com vinte e oito anos de Brasil, sou e serei sempre “gringo”. Não digo isto como um facto negativo, mas como a constatação de um facto.

3- Que obstáculos teve de superar e como o fez?

O principal obstáculo foi a diferença cultural, incluindo a maneira de fazer negócios, e o protecionismo local às empresas e aos empreendedores. Para superar este fator, assumi o espírito de não cair na tentação de importar modelos de negócios de fora. “Em Roma tens de ser romano” – adaptei-me à maneira brasileira de fazer as coisas e principalmente respeitar a realidade local. Para além disso, encontrei um excelente parceiro local, pernambucano de nascença, que é meu sócio há mais de 20 anos. No meu setor, tive a felicidade e a sorte de ser pioneiro numa atividade que não existia no Brasil. Isso permitiu-me crescer sem grande concorrência e obstáculos. No entanto, o facto de uma pessoa de fora ter êxito num setor ainda hoje cria uma certa inveja e ciúme local.

De uma maneira geral, o investidor estrangeiro é bem-vindo no Brasil e acarinhado e ajudado pelos brasileiros locais. No entanto, é necessário ter um certo cuidado pois, no momento em que o seu negócio começa a interferir ou a “fazer sombra” a alguma empresa ou grupo local, o clima pode mudar e podem surgir dificuldades acrescidas e inesperadas.

4- O que mais admira no país onde está?

O povo. Quando falo do povo, falo essencialmente dos brasileiros humildes que labutam no dia a dia, esforçando-se para colocar comida em casa. Jamais esquecerei aquilo que me aconteceu e acontece às vezes no interior do Brasil… Uma pessoa chega a uma comunidade do interior, bem pobre, onde o dia a dia é extremamente difícil, sem qualquer tipo de estrutura de restaurante ou hotel e pergunta onde se pode dormir ou comer. E, de repente, aparece alguém, bem humilde, a oferecer a sua casa, nem que seja para dormir numa rede, e a convidar para comer. Quando chega o momento da refeição, verificamos que a família matou a única galinha que tinha para nos dar de comer. Este é o Brasil que eu mais admiro e venero.

5- O que mais admira na empresa ou organização onde está?

Como presidente de uma empresa que criei em setembro de 1997, naquela altura de nome Braselco – hoje, Qair Brasil –, aquilo que mais admiro é o espírito de solidariedade e de família, aliados a muita competência, profissionalismo e “know-how”, numa organização transversal com muita responsabilidade e liderança.

Fomos a segunda empresa do Ceará a conseguir a Certificação ESG, AAA, e dá-me um prazer enorme levantar-me todos os dias entre as 05h00 e as 05h30, para ir trabalhar.

Normalmente, faço competição com as senhoras responsáveis pela limpeza do escritório, para ver quem chega mais cedo.

O espírito de família existente faz com a que a nossa empresa se torne extremamente “apetitosa”, em termos de local para trabalhar.

6- Que recomendações daria a Portugal e aos seus empresários e gestores?

O Brasil continua a ser um país de futuro, com excelentes oportunidades em quase todos os setores, salientando as infraestruturas, energia, saneamento, imobiliário, agricultura e serviços. A grande questão é sempre encontrar as pessoas certas para os lugares certos, nos momentos certos. Nunca tentem importar modelos, respeitem sempre a maneira de fazer as coisas localmente, e tenham paciência, muita paciência e resiliência.

Tenho visto grandes empresas e grandes empresários a darem-se muito mal no Brasil, por causa do seu espírito “Lá no meu país, faz-se assim”.

É importante realçar que, para fazer negócios no Brasil, é necessário estar no Brasil. Tentar fechar negócios e obter contratos, sejam eles quais forem, tendo as empresas em Portugal, ou noutro país, com aquele espírito de que quando fechar o primeiro negócio abro no Brasil, não funciona.

Os empresários, setor a setor, têm de abrir as suas empresas no Brasil e, se possível, arranjar parceiros locais, de confiança, que conheçam as pessoas, o mercado e a economia local.

7- Em que setores do país onde vive poderiam as empresas portuguesas encontrar clientes?

Clientes no Brasil, estando as empresas em Portugal, como já disse anteriormente, não funciona. As empresas portuguesas têm de se instalar no Brasil e compreender as pessoas e o mercado. Só funciona na importação direta de produtos, tais como vinhos, azeite, peixes e frutos do mar, máquinas e equipamentos industriais, produtos alimentícios processados, medicamentos e produtos farmacêuticos, e outros.

Como principais setores, nos quais empresa e empresários portugueses poderiam investir no Brasil, destaco as infraestrutura e construção civil, energia, agroindústria, tecnologia e inovação, educação e formação profissional e logística e transporte.

8- Em que setores de Portugal poderiam as empresas do país onde vive querer investir?

Destaco os setores de imobiliária e construção, turismo e hotelaria, tecnologia e startups, educação e formação profissional, saúde e bem-estar, indústria alimentar e bebidas, serviços financeiros e economia do mar.

9- Qual a vantagem competitiva do país em que vive que poderia ser replicada em Portugal?

Em primeiro lugar a capacidade financeira dos principais grupos empresariais brasileiros, a qual ligada à capacidade imaginativa de idealizar e concretizar os vários tipos de negócios, lhes dá uma considerável vantagem competitiva em Portugal.

A maioria dos empresários portugueses, salvo algumas exceções, é um pouco retrógrada e conservadora.

Os brasileiros são muito mais ousados e imaginativos.

10- Pensa voltar a Portugal? Porquê?

Hoje, a minha vida, a minha família (esposa e duas filhas), alguns dos meus amigos, e quase todos os meus negócios estão no Brasil.

Tenho a minha mãe, com 93 anos, que vive em Coimbra, e, enquanto ela for viva, tenho como compromisso comigo mesmo e com ela visitá-la pelo menos uma vez por mês. Para além disso, tenho um filho, uma nora, duas irmãs, dois cunhados e muitos amigos em Portugal, especialmente em Coimbra.

Quem nasceu, estudou e viveu em Coimbra tem um significado muito especial para a palavra “saudade”.

Enquanto a minha mãe for viva, vou continuar a ir visitá-la, pelo menos, uma vez por mês.

Depois, nunca se sabe, mas voltar definitivamente a Portugal, abandonando o Brasil, não. Penso que irei dividir o meu tempo entre um país e outro.

Não faz parte dos meus planos deixar de trabalhar ou reformar-me tão cedo. Enquanto o despertador continuar a tocar às 05h30 e eu tiver vontade e ganas de vir para a minha empresa, não vou parar.

Para mim, família e amigos em primeiro lugar. Vou continuar a visitá-los e a curtir os anos que me faltam, com eles.

Sem família e sem amigos não somos ninguém.